Recentemente atendi uma turma de alunos de uma escola particular e algo chamou minha atenção, o que é justamente o título desse post: a conexão entre mulheres e meninas.
Para quem está chegando aqui no blog agora, eu sou Meteorologista porém em meu trabalho na Estação Meteorológica do IAG-USP eu faço parte de um trabalho de divulgação científica. As crianças, jovens e adultos vem visitar meu local de trabalho e eu tenho a oportunidade falar para elas um pouco sobre minha profissão, sobre a Meteorologia e curiosidades relacionadas à minha área.
Trabalhar com o público proporciona uma miríade de experiências. Eu tenho poucas histórias de experiências muito negativas. Por outro lado, tenho várias histórias de experiências curiosas ou positivas. Já contei sobre o dia que disseram que eu era muito nerd, também já contei sobre os clichês machistas que as crianças reproduzem e também já contei sobre a dificuldade de sensibilizar nos dias de hoje.
Mas voltando a história em questão, atendi uma turma de alunos de uma escola particular e a turma era um pouco grande, tinha uns 30 alunos. Como eu preferimos atender turmas menores, a turma foi dividida em duas e a pedido dos alunos, a turma foi dividida entre meninos e meninas.
Os alunos tinham por volta de 12 anos e eram ótimos. Já chegaram direcionados, sabiam os nomes e as funções de vários instrumentos meteorológicos. Tinham uma noção muito boa da diferença entre os termos tempo e clima e todos gostavam muito da Maju Coutinho, a apresentadora do tempo mais conhecida, simpática e competente da atualidade.
Atendi primeiro o grupo dos meninos enquanto o grupo das meninas estava fazendo atividade em outro local. Mostrei os instrumentos meteorológicos para eles, eles observaram e fizeram ótimas perguntas. Havia um menino em especial que estava muito inquieto e animado, aparentemente ele gosta muito de meteorologia e já sabia várias das coisas que eu estava falando ali. Eles foram embora e a turma das meninas chegou. Percebi que as meninas não pareciam tão animadas quanto os meninos, o que sempre lamento. Ainda somos minoria em STEM e eu gosto de pensar que meu trabalho pode ajudar outras meninas a se interessarem por Ciência e Tecnologia. Mesmo que elas optem por não atuar em uma carreira em STEM (optem mesmo, não por pressão social ou por estereótipos negativos), espero que eu possa de alguma maneira inspirá-las a estudarem bastante e lutarem pelos seus sonhos.
Mesmo não tão animadas, as meninas me ouviram atentamente e fizeram algumas perguntas. Ao final da apresentação, quando elas já estavam indo embora, várias me cercaram para fazer perguntas sobre mim. Isso sempre acontece com várias turmas, noto que as meninas em geral querem saber minha idade, se eu tenho filhos, etc. Acho muito fofo, eu percebo que rola uma conexão, porque elas sabem que serão mulheres e algumas já até passaram pelas primeiras experiências biológicas que indicam isso.
Bom, eu estou grávida. Então essa turma de meninas fez várias perguntas sobre isso. Perguntaram de quanto tempo estou grávida (29-30 semanas, dá quase 7 meses, caso vocês queiram saber também hahaha). Perguntaram qual o sexo do meu bebê (menino), perguntaram qual vai ser o nome do meu filho, se eu me sentia cansada, se alguém iria me substituir no meu período de licença, etc. Os meninos nunca fazem essas perguntas, mas as meninas quase sempre fazem. E ao atender turmas separadas nessa ocasião, essa peculiaridade ficou mais evidente. Uma das meninas, que disse que adora futebol, torceu para que meu filho goste de futebol também. Uma outra, ao se despedir de mim, disse que espera que tudo corra bem. São meninas de 12 anos com vários sonhos e muito provavelmente várias delas já participaram desse momento especial com as mães, com uma tia, prima mais velha ou amiga da família. Certamente várias dessas meninas também sonham em serem mães no futuro. Algumas talvez mudem de ideia com o decorrer do tempo, enquanto outras manterão essa ideia fixa em suas mentes e ansiarão por esse momento.
Fiquei pensando nessa conexão com as meninas. Uma conexão que eu preciso explorar toda vez que for falar de Ciências. Uma conexão que pode ser que as ajude a gostar de STEM, uma vez que elas estão vendo um “rosto” de uma mulher que trabalha nessa área e assim rola uma identificação. Ao pensar nessas coisas, fiquei muito feliz. E espero que todas as meninas tenham mais oportunidades do que eu tive (felizmente tive algumas, meus pais sempre me incentivaram) e que possam ser pessoas felizes e realizadas.
Eu vou citar agora o Neil DeGrasse Tyson e sei que ele andou se envolvendo em uma controvérsia muito séria: uma acusação de estupro. Até onde soube, ele não se pronunciou sobre a denúncia. Também sei que ele é considerado arrogante por alguns, devido a maneira que se comunica (eu discordo um pouco disso, talvez seja uma questão de interpretação nesse caso). Porém eu preciso mencionar essa frase específica que ele citou em um tweet, uma vez que ela sintetiza muito o que eu espero para a sociedade e eu espero que você não se chateie comigo caso não goste dele:
Imagine how much more advanced society would be today if women, who comprise half the world’s brain power, were socially & intellectually enfranchised from the beginning of civilization.
— Neil deGrasse Tyson (@neiltyson) October 16, 2018
Vou fazer minha tradução livre do tweet:
“Imagine que a sociedade seria muito mais avançada do que é hoje se as mulheres, que correspondem a metade da população mundial (e metade do ‘poder mental’ ou ‘poder de raciocínio’ que a sociedade dispõe), fossem socialmente e intelectualmente empoderadas/estimuladas/emancipadas desde o começo da civilização”
Bom, acredito que o poder dessa frase fará vocês compreenderem porque a escolhi para ilustrar meu raciocínio. Essas meninas que atendi estão recebendo educação formal e provavelmente são boas alunas. Mas imagine que ao redor do mundo, muitas mulheres não tem essas mesmas oportunidades. Quando li Cabul no Inverno, a autora fala dos desafios de educar as meninas no Afeganistão, país em que há pouco tempo atrás os homens discutiam se as mulheres tinham os mesmos direitos dos seres humanos ou não (o que é narrado no livro). Quando a gente pensa em meninas como a Malala Yousafzai, jovem ativista paquistanesa que foi vítima de um atentado enquanto ia para a escola e foi baleada, porque o Talebã impedia que meninas frequentarem a escola, entendemos que nem todas as meninas tem acesso à educação.
O que temos no Brasil atualmente é um crescente levante das mulheres. Eu defendo muito o empoderamento através do conhecimento e isso só ocorre com meninas bem orientadas, frequentando as escolas, lendo bons materiais e adquirindo senso crítico. Não podemos deixar que a situação política que estamos vivendo ameace essas conquistas que obtivemos. Essas conquistas precisam inclusive ser ampliadas, para possibilitarem ainda mais oportunidades para todas as crianças, pois a marcante desigualdade de oportunidades é algo que ainda é muito forte no Brasil. É a tal história: discutir meritocracia no Brasil é muito complicado.
O Brasil ainda é muito desigual em tudo e um dado recente do Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa-ONU), publicado no chamado relatório Situação da População Mundial dá um exemplo dessa desigualdade. Em média, as brasileiras tem tido menos filhos. Em 70 anos, o número de filhos por mulher caiu de 6 para 1,7.
Para vocês entenderem, uma taxa de fecundidade entre 1,7 e 2,1 significa que o país está apenas repondo a população. Ou seja, a tendência é que a população cresça por alguns anos (devido ao aumento da expectativa de vida) e que depois fique estável. A tendência é que daqui poucas décadas, a população seja em média mais idosa e pare de crescer em quantidade.
Só que pera aí, o Brasil é muito desigual! Se a gente vai na periferia de uma grande cidade ou em cidades bem pequenas e afastadas do interior do país, vamos facilmente encontrar mulheres com mais de 3 filhos. Muitos desses filhos não foram exatamente planejados e na verdade as meninas (sim, elas são mães super jovens, algumas até da idade ou pouco mais velhas que minhas aluninhas) não tem nem a noção do que significa planejar ter um filho e não tem uma boa orientação familiar. Eu conheço casos próximos de meninas com menos de 20 anos e que já tem 3 filhos, até de relacionamentos diferentes. Para que fique claro, não estou criticando o fato das pessoas terem vários relacionamentos. O que questiono aqui é o fato de uma menina tão jovem já ter essa experiência, que a gente sabe que gera enorme desgaste emocional. Essas meninas são de família de classe média baixa (ou até mais pobres), muitas vezes recebem um pouco de auxílio do governo (é mísero, gente!), dependem da boa vontade de pessoas próximas ou igrejas ou dependem do salário da mãe ou da avó. Essas meninas sabem muito bem como se engravida (não caiam no mito do pobre ingênuo), porém a questão é que elas não tem exemplos de mulheres que tem bons empregos ou que estudaram. Para elas, a vida consiste naquilo: namora um cara hoje, pode engravidar ou não (destino), termina o relacionamento, segue a vida, repete tudo etc. Elas não tem outras aspirações porque elas não conhecem outros exemplos! A região que elas moram é deficiente em infra-estrutura, não conta com escola de qualidade, os professores fazem o que podem (e estão desanimados, tristes e deprimidos), não há um centro cultural ou biblioteca, não há um incentivo a adquirir conhecimento, etc. Elas simplesmente não tem exemplos de pessoas cultas por perto! Elas não conhecem outros caminhos além de “viver a vida e ver no que dá”. Não há objetivos, não há como sonhar.
Além disso, claro que nem todo lugar conta com uma rede de saúde preventiva. Muitas meninas não tem acesso a preservativos ou a aulas de educação sexual e saúde feminina. Muitas vezes nem há um ginecologista no posto próximo a casa delas, porque mais uma vez, o Brasil é desigual. Em 2012 a BBC escreveu uma reportagem especial sobre o fato de já sermos 7 bilhões de pessoas no mundo. Há países com taxas de fecundidade enormes (na África e no Oriente Médio, como mencionamos anteriormente), onde as mulheres tem mais de 6 filhos. O Brasil tem áreas que lembram essa situação de país pobre e também tem áreas que lembram a situação de países desenvolvidos. A desigualdade é uma característica marcante aqui. Desigualdade de oportunidades, de acesso a serviços de qualidade, de acesso a equipamentos culturais, etc. A reportagem da BBC destacava que nos países onde as mulheres tinham acesso às mesmas oportunidades de educação e carreira que os homens, naturalmente elas tendiam a ter menos filhos porque inclusive adiavam a maternidade ou até decidiam não serem mães.
Vou me usar como exemplo. Eu tenho 35 para 36 anos e vou ser mãe pela segunda vez. Quando fui mãe pela primeira vez, eu tinha 32 anos. Várias amigas minhas não tem filhos (a maioria delas, na verdade). Tenho 3 amigas próximas que tem filhos, e todas foram mães depois dos 30 (uma delas foi mãe depois dos 40). Todas essas amigas estudaram muito, fizeram cursos universitários e cursos livres e de extensão em geral. Todas elas tem boas carreiras e estão satisfeitas com o que fazem (veja, quando falo em boa carreira é evidente que não falo em perfeição na vida, claro). E então puderam planejar melhor suas próprias vidas.
Na escolinha do meu filho, há muitos filhos únicos. Não me lembro de nenhum caso de mãe de 3 filhos na comunidade escolar: as mulheres tem no máximo 2 filhos. Os amiguinhos mais próximos do meu filho são filhos únicos ou tem apenas um irmão. Quando você planeja a maternidade, você também planeja o número de filhos porque sabe que vai despender muita atenção e entrega emocional, além de evidentemente investir recursos em sua educação. Sendo assim, as pessoas que se planejam e pensam nessas questões terão no máximo 2 filhos, pois quanto menos filhos, maior a possibilidade de dar a eles boa educação formal.
Do jeito que o Brasil está, se nada for feito para dar oportunidades para que as pessoas mais pobres possam estudar e ter uma carreira, a população pobre do Brasil vai crescer e ficar cada vez mais miserável. É clichê e extremamente repetitivo falar isso, mas o Brasil precisa investir mais em educação. E o mundo inteiro precisa dar ainda uma atenção maior a educação das mulheres. Mulheres cultas e bem educadas vão ser o pilar da educação dos filhos. Claro que é necessário ocorrer uma divisão de tarefas e responsabilidades com o companheiro, mas as crianças são mais ligadas à mãe, principalmente nos primeiros anos de vida.
Quando penso nas minhas avós e observo que as duas eram alfabetizadas e estudaram até o chamado ginásio (atualmente, ensino fundamental) penso que sou privilegiada. Minhas duas avós trabalhavam fora de casa e em casa. Uma delas trabalhou como cozinheira, em fábricas, vendedora na feira e dona de casa. A outra trabalhou como agricultora, empreendedora (teve com meu avô uma pequena farmácia e uma mercearia) e dona de casa. O fato de minhas avós saberem ler, escrever e fazer contas ajudou meu pai e minha mãe a serem pessoas instruídas. Meu pai inclusive foi o único de seus irmãos que fez curso superior. Mulheres bem educadas ajudam a formar filhos cultos, por isso a educação formal da mulher precisa ser tão levada em consideração. E eu acredito que a conexão entre nós permite que eu em meu trabalho, mesmo que de forma incipiente, eu consiga inspirar as meninas a estudarem. Quando atendo escolas públicas, eu me sinto ainda mais responsável, porque talvez eu seja um dos poucos exemplos de mulheres com educação formal que essas meninas vão conhecer. Talvez eu serei a única ‘mulher da Ciência’ que essas meninas vão conhecer pessoalmente, num primeiro momento. O mundo mudou, a internet permite que as pessoas sonhem mais e se informem mais. Espero realmente poder inspirar.
Empodere-se através do conhecimento!
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