
Antes de mais nada, vamos definir o verbo hitar. Consultei adolescentes e entendi que hitar significa atingir muitos likes e compartilhamentos com algo que você postou. Não importa a qualidade do conteúdo postado, o que importam são os números. Bom, não vou falar do chororô em cima da decisão do Instagram de ocultar as curtidas (leia aqui), isso é assunto para outra conversa.
Pois bem, eu estava no Twitter como quem não quer nada quando o Avelino (que eu acompanho em fóruns de discussão desde os tempos do finado Orkut, gosto do que ele posta) compartilha um tweet inacreditável. Nele, uma moça bem jovem dizia o seguinte:
primeiro q eu vejo vcs falando de estudar como se isso fosse dar dinheiro e geralmente é só stress. esse povo q estudou e tá ganhando salário de 80.000 na maioria das vezes tem papai e mamãe q bancou tudo e fortaleceu com uns cifrão. para aí
Quando comecei a escrever esse post, notei que esse tweet tinha 625 compartilhamentos e 2600 likes. Eu realmente não entendi o sucesso do tweet, inicialmente. Digo inicialmente porque eu estava observando o tweet de acordo com o meu ponto de vista. Eu não observei a questão pela perspectiva de quem escreveu e essa perspectiva parece ser a da maior parte dos brasileiros.
Bom, vou começar a discutir o assunto falando de mim e vocês vão ver que gradualmente vou ampliando o assunto. Sou uma pessoa prolixa e que adora contar histórias, então segurem berenices.
Eu cresci em um bairro da periferia de São Paulo. Longe de tudo, mais de 1h para chegar no centro da cidade. Nos horários de pico, as pessoas se espremem para chegar no trabalho ou para voltar para casa. É bem difícil. Estudei até o final do Ensino Fundamental nesse bairro. Depois fui aprovada em dois vestibulinhos e fiz ensino médio e técnico em duas escolas mais próximas do centro da cidade e com qualidade de ensino bem melhor do que essa primeira escola onde fiz o fundamental.
Nessa primeira escola em que fiz o fundamental, sofri bullying por gostar de estudar. E não foi apenas em uma ocasião. Algumas pessoas debochavam de mim enquanto outras me achavam metida, certinha, arrogante, etc. Vejam, quando digo que me chamavam de certinha e coloco junto com outras qualidades negativas, é porque ser honesta, estudiosa e bem comportada eram adjetivos mal vistos. O bom mesmo era ser escandalosa, grosseira, pouco refinada, conversar mal, etc. Sim, era assim. Infelizmente. E ainda deve ser assim, mas não vou falar muito porque dá pano para manga e pode gerar muita má vontade na interpretação do que quero transmitir.
Mas eu tinha os meus professores que gostavam muito de mim e sempre me apoiavam. E para mim isso era importante demais, eles eram meus heróis e heroínas. Eles me incentivaram a prestar os vestibulinhos (provas para ingressar em escolas de ensino médio e técnico). Quando eu fazia um trabalho ou uma tarefa e me esforçava para ir além do que vi em sala de aula, eles me incentivavam e sempre comentavam sobre a qualidade de meu trabalho. Havia outras pessoas como eu, mas eram poucas.
Bom, naturalmente ao longo dos anos fui gostando de estudar. Meus pais e professores sempre me incentivavam e eu fui me tornando uma pessoa curiosa e que acreditava em meu potencial. Passei nos vestibulinhos, consegui bolsa de 70% em uma prova de um famoso cursinho, fui aprovada em dois vestibulares, concluí o curso de Meteorologia, fiz mestrado, passei em concurso público, etc. Tive conquistas ótimas na minha vida e eu devo todas elas ao fato de ter sido incentivada desde cedo, o que fez com que eu acreditasse em meu potencial e também me fez ficar cada vez mais curiosa para aprender coisas novas. Atualmente, como contei para vocês, não estou trabalhando formalmente. Estou com vários projetos para o futuro e todos eles envolvem estudar mais. Eu sei que posso! Sei que se eu me dedicar, eu vou conseguir atingir meus objetivos. Estudar me empoderou. E eu sempre bato nessa tecla, porque a ideia de empoderamento anda bastante distorcida por aí, ao menos na minha opinião. Para mim empoderamento é saber que podemos resolver problemas, compreender o mundo e nos sustentar e isso só é possível estudando e trabalhando duro. Há pessoas que não tem oportunidade para isso, mas daí é outra discussão.
Pois bem, só que eu preciso dizer para vocês que eu não fiquei rica estudando. Estudar não me deixou rica, porém possibilitou que eu tivesse meios para ganhar o meu pão de cada dia com muito conforto. Não ganho 80 mil reais por mês e provavelmente nunca ganharei tal soma. Mas eu saí da periferia de uma grande cidade e consegui um emprego que me permitiu o sustento e ainda pude conquistar vários sonhos.
Agora me diga: se eu não tivesse estudado, o que poderia ter feito para me sustentar? Certamente eu teria procurado vagas de emprego que não exigem qualificação. Eu iria ganhar menos e teria uma vida bem mais difícil.
Trabalhar sempre é difícil. Problemas com os colegas, com a chefia, com a empresa, etc. Você pode escrever toda uma discussão sobre o sistema capitalista, mas me diga qual seria a alternativa? A pessoa que escreveu esse tweet sem noção o digitou em um smartphone ou PC que foi comprado pelo dinheiro de alguém. Esse alguém trabalhou, a vida é assim, é dura mesmo.
Eu fico assustada com esses discursos que sugerem essa radicalidade. A pessoa tem que viver na miséria ou ganhar 80 mil reais por mês. Querido jovem estudante, se você chegou até esse texto achando que dá para ficar super rico fazendo um determinado curso universitário, eu vou repetir: não dá. Pode até acontecer de alguém ficar muito rico, mas são casos isolados. Não trabalhe com exceções.
Eu já recebi várias perguntas sobre o quanto ganha um Meteorologista e percebo que o salário é algo que norteia muito a escolha da carreira e muitas vezes é o principal motivo de escolha. Pensar dessa maneira leva à frustrações. Mesmo que a área pague bons salários, é preciso levar em consideração questões como horas de trabalho, condições de trabalho, prazer com aquela atividade, sorte, indicações, etc. São tantos parâmetros que podem levar uma pessoa a ter ou não um bom emprego que mesmo uma pessoa altamente capacitada pode não conseguir a vaga dos sonhos. Claro, ser capacitado aumenta as chances, mas eu quero dizer que não é apenas isso.
Eu entrei na Universidade porque gosto de estudar e meu esforço e meu relacionamento com colegas foram me levando para as oportunidades. Não foi e nem é fácil (ainda mais agora que vou recomeçar). Eu tinha total noção de que eu não ganharia 80 mil reais por mês, porque sempre tive os pés no chão. Ter estudado em uma Universidade me fez ter uma maior compreensão do mundo. Eu aprendi a buscar informação, aprendi a filtrar as informações que recebi e aprendi ferramentas que se transformaram em meu ganha-pão. Ou seja, estudar em uma Universidade me trouxe um inigualável crescimento pessoal que excede a questão financeira.
É óbvio que se você é de uma família que já tem posses algumas coisas podem ser facilitadas. Se você quiser empreender, sua família vai poder te apoiar financeiramente. Durante a faculdade, vai poder morar em um bom apartamento próximo à Universidade, não vai precisar trabalhar fora, etc. Esses detalhes ajudam na hora de estudar, claro. Mas isso não significa que uma pessoa que vem de um cenário mais modesto deva desistir e deixe de pensar na possibilidade de estudar. Se estudando já é difícil, imagine sem estudar?
Pois bem, daí lá no bairro que cresci ainda tenho que saber que existem por lá pessoas que não compreendem o esforço de pessoas como eu. Então essas pessoas, motivadas por ideologias distorcidas e inveja, acham que “minha vida foi fácil” ou se perguntam como eu consegui fazer isso ou comprar aquilo. Porque é só isso que essas pessoas veem: aquilo que pode ser fotografado.
Foi quando entendi que o pensamento da moça que escreveu o tweet é o pensamento bem geral das pessoas, infelizmente. Se o brasileiro médio não entende a importância das pesquisas científicas, naturalmente não vai compreender a importância de adquirir conhecimento. Por mais que o diploma universitário seja o sonho de muita gente, essas pessoas só querem o diploma para conquistar um emprego melhor e não veem beleza na trajetória da aquisição do conhecimento. Essas pessoas querem apenas o diploma para “esfregar na cara da sociedade”. Tem muito a ver com o ensino básico péssimo que temos no país. Ao meu ver o jovem já deveria sair do ensino médio com alguma formação técnica que permitisse um bom primeiro emprego.
Além disso a qualidade de muitos cursos superiores é baixíssima e nem é culpa dos professores, já que eles precisam mastigar o conteúdo e aceitar trabalhos bem ruins para que o tal diploma seja rapidamente adquirido. Ou seja, o diploma de ensino superior surge para tentar sanar deficiências do ensino básico. E infelizmente não consegue.
Aquelas pessoas lá de trás, do início de minha vida de estudante, nunca entenderam porque eu gosto de estudar. Eu sei, vai ter gente dizendo que na periferia há uma série de questões e talvez estudar tenha que ser deixado em segundo plano. Eu concordo e eu vi isso. Ocorre que não são apenas as dificuldades financeiras ou de infraestrutura. Há também uma cultura da superficialidade, onde o que importa é “ganhar dinheiro a qualquer custo” e adquirir conhecimento seja considerado algo completamente ignorado.
P.S.: É claro que estou pensando também na hipótese de a moça que escreveu o tweet estar exagerando ou desabafando. Vai ver ela viu algo que a chateou, alguma história dessas de alguém que teve facilidades na vida. Porém me assusta esse tweet ter sido tão curtido e compartilhado e eu quis discutir esse assunto.
Imagem de abertura: Pixabay
Somente discordo da formação técnica no ensino médio.
As formações do ensino fundamental e médio deveriam ser para formar um cidadão com capacidade de crítica.
Eu colocaria uma disciplina de Técnicas do Trabalho Científico no ensino fundamental para melhorar a capacidade de leitura, interpretação e crítica do que se lê – certo conheço inúmeras pessoas, com nível superior, que usaram a disciplina apenas para o TCC, mas…
Concordo, Nemo. Eu acho importante se profissionalizar, mas ensino de conteúdos de Lógica ou Metodologia Científica não podem ser desprezados também.
Creio que é possível, de alguma maneira, aliar as duas coisas. Como aulas pela manhã e durante a tarde (parte profissionalizante), algo assim.