Vez ou outra me deparo com debates sobre mudanças climáticas em canais do Youtube ou até mesmo em programas de televisão. Em alguns desses debates, apresentam a ideia de que é necessário trazer uma pessoa que concorde com o consenso da comunidade científica – de que o aquecimento global é causado pela atividade humana – e uma outra pessoa que negue o aquecimento global, para que elas passem o programa inteiro tentando apresentar seus argumentos para convencer o telespectador para “qual time torcer”.
A Ciência não é democrática. Elaborando hipóteses e através de evidências, nós podemos chegar a conclusões que podem ou não nos agradar e que podem ou não serem iguais ao senso comum. A Ciência não existe para agradar um determinado grupo de ou para atender os anseios da maioria.
Claro que novas evidências podem surgir e as conclusões podem mudar ao longo do curso de uma pesquisa científica, mas o que quero dizer é que as conclusões não correspondem àquilo que queremos. Ser cientista é lidar com a frustração, com resultados que fogem daquilo que esperávamos no momento da formulação das hipóteses.
Quem fuma, gostaria que o cigarro não fizesse mal. Se você gosta de picanha, gostaria também de acreditar que aquela gordurinha não faz mal para a saúde. Mas não dá para se auto-enganar quando a comunidade científica é categórica, quando há evidências claras que mostram que esses dois hábitos (fumar e comer carne gordurosa) fazem muito mal para a saúde.
Quem gosta de andar de carro e viajar de avião, queria que essa história de aquecimento global provocado pelas atividades humanas fosse um equívoco. É desconfortável constatar que atividades prazerosas e até cômodas estão impactando no meio ambiente. E elas estão. Há um consenso na comunidade científica. Nesse texto, falo do artigo do John Cook que falava de um consenso de 97%. No entanto, o próprio Cook fala que esse consenso já passou dos 97%, pois desde 2013 (quando o artigo que comento foi publicado), muita coisa aconteceu e temos registrados vários novos recordes de temperatura elevada repetidamente. Como sempre ressalto: claro que um único valor elevado de temperatura não é evidência para falarmos em aquecimento global, mas acontece que agora não temos somente um valor elevado. São recordes sendo batidos com frequência e as normais climatológicas de temperatura tem subido nos últimos 30 anos em estações meteorológicas por todo o mundo.
Bom, onde quero chegar? É que quando os jornalistas falam em “vamos mostrar o outro lado, a outra opinião” está com uma noção bastante equivocada do que é Ciência. Ora, se numa discussão sobre o cigarro não chamam um lunático que diz que o cigarro ‘não faz mal não, pode fumar’, por que numa discussão sobre o aquecimento global é preciso chamar uma pessoa que negue sua ocorrência ou negue que a atividade humana está causando esse aquecimento?
Não estamos falando de opinião: estamos falando de fato científico. É diferente de um debate político, por exemplo, em que cada lado tem uma opinião. Eu já até falei sobre isso: aquecimento global não é um assunto ou propriedade desta ou daquela ideologia política, já que trata-se de um fato científico.
Bom, vocês já perceberam que negadores do aquecimento global muitas vezes ganham espaço na mídia. Há nomes de negadores bem conhecidos no Brasil e no mundo. O que leva alguém a negar o aquecimento global tem relação na maioria das vezes com quem está financiando. A indústria do petróleo e do agronegócio em grande escala são dois exemplos de áreas que teriam que mudar totalmente diante das evidências de que o aquecimento de 1,5 ºC pode ser fatal. Como essas áreas de atividade querem continuar ganhando dinheiro do jeito que ganham, financiar pessoas que sejam uma voz contrária ao consenso científico parece uma solução natural. Aceitar o aquecimento global como um fato científico (o que é) faz com que tenhamos que mudar totalmente nossa maneira de agir em escala local/familiar e principalmente em grande escala (grandes corporações, governos).
Um artigo recente publicado na Nature Communications (Petersen et al 2019) mostram o quanto essa ideia de “mostrar o outro lado” permite que as pessoas tenham uma impressão errada a respeito do tema mudanças climáticas. Apesar do consenso científico no que diz respeito ao aquecimento global causado por razões antropogênicas, os negacionistas (que representam uma porcentagem pequena da comunidade científica) conseguem uma cobertura na imprensa praticamente igual. Mesmo publicando artigos em periódicos científicos de menor prestígio e de menor impacto, os negacionistas acabam tendo visibilidade porque a imprensa quer ‘mostrar o outro lado’ e a gente também não pode descartar que os meios de comunicação vivem de dinheiro de propaganda, e claro, precisam agradar aos anunciantes.
Eu não deixo de pensar que aqui estamos falando de uma área que domino, que é a Meteorologia. Acredito que médicos, biólogos, engenheiros, etc terão observações semelhantes a respeito da cobertura da imprensa sobre temas relacionados com suas áreas de expertise. Acredito que cabe aos jornalistas dedicados à cobertura de temas científicos um maior preparo e até cursos de capacitação para lidar com o assunto.
Radar Meteorópole
Vocês sabem que podem ouvir minha linda voz (cof cof) em algumas participações em alguns podcasts do Portal Deviante. Mas eu preciso contar uma novidade para meus leitores: eu também participo do Teolabcast! Agora sou parte da equipe, real oficial. Se eu não estiver escrevendo por aqui, vocês vão poder me ouvir nesses podcasts. Confiram!
Sybylla diz
Imagine numa discussão sobre racismo, alguém dispara: “Wow, calma aí, vamos mostrar o outro lado da discussão. Chamei aqui alguns capitães do mato e fazendeiros pra tratar a questão.”
Fala sério, né? O povo solta essa babaquice apenas pelo medo de admitir que está errado.
Nemo diz
O que você achou da entrevista do prof. Carlos Nobre no programa Roda Viva?
Guilherme de Almeida diz
Boa noite, Samantha, tenho lido vários de seus posts. São muito esclarecedores. Tenho uma pergunta que, na verdade, era pra ser em outro post(sobre a comparação de calor entre Rio de Janeiro e capitais do nordeste), mas, pelo que eu entendi, você bloqueou os comentários. De qualquer maneira, gostaria de saber por que, a despeito das mudanças climáticas, este ano(2019) que se encerra foi atipicamente menos quente aqui no Rio de Janeiro. Hoje é dia 29/12 e, normalmente nesta época o clima está insuportavelmente quente. No entanto, a temperatura está agradável (principalmente à noite) na maioria dos dias. A máxima não tem passado de 30 e muitas madrugadas tem chegado a 23°. Sou nascido e criado aqui e posso dizer que isso é raríssimo. Obrigado.