É compreensível que estejamos falando apenas de coronavirus. Recentemente viralizou o vídeo de um garotinho assustado com mamonas pois pensava que elas fossem coronavírus. As crianças (e adultos também) tem dificuldade de compreender coisas muito pequenas (escala microscópica) e coisas muito grandes (como escalas astronômicas que envolvem distâncias, por exemplo).
Outro dia ouvi um pastor sem noção conhecido de minha família (não posso expor) comparando a luta contra o coronavirus (segundo ele, algo invisível) com a luta contra demônios (também invisíveis, de acordo com a narrativa dele). Cito esse exemplo apenas para mostrar em que pé estamos depois de anos negligenciando a Educação. E claro, aqui provavelmente há aquela dose de má fé e fraca oratória.
Pois então, eis que moradores de Montemorelos, no México, foram surpreendidos com uma tempestade de granizo no último sábado (16/05), de acordo com informações do R7. Bom, todo mundo conhece tempestades de granizo, elas são assustadoras e podem causar danos materiais. Porém dentro desse contexto de pandemia, os moradores de Montemorelos associaram o formato do granizo que caiu durante a tempestade com o formato do coronavirus:
Observe que esses granizos tinham um formato circular e possuíam algumas protuberâncias que lembram as espículas (peplômeros) do envelope viral. Sendo assim, qualquer coisa circular com espinhos/pontas em toda a sua volta pode lembrar o coronavirus. Inclusive muita gente pelo Twitter associou com esse brinquedo:
Ok, então agora vamos entender porque o granizo lá de Montemorelos tem esse formato curioso. Eu sei que muitos de vocês já viram granizo menor e com o formato mais ovalado ou esférico.
No interior de nuvens Cumulonimbus (Cb), temos temperaturas baixas o suficiente para que se formem cristais de gelo. Dentro das nuvens de tempestade (nuvens Cb), há gotinhas de água que conseguem sobreviver no estado líquido abaixo da temperatura de congelamento. Dizemos que essas gotinhas são formadas por água superresfriada. Falei sobre esse assunto nesse post sobre microfísica de nuvens, mas vale a pena retomarmos os conceitos.
As gotículas de nuvem não congelam a 0°C! Para falar a verdade, água pura e suspensa no ar só vai congelar lá pelos -40°C. Dentro da nuvem, pode existir água líquida em temperaturas entre 0°C e -40°C. Essa é a chamada água superresfriada. Como os núcleos que formam gotículas de água são muito mais abundantes que núcleos que formam cristais de gelo, nas nuvens com temperaturas entre -10° C e -20° C gotículas de água superesfriada são muito mais abundantes que cristais de gelo, ao menos inicialmente. De fato, um só cristal de gelo pode estar rodeado por centenas de milhares de gotículas de água superesfriada.
Temos então a segunda característica interessante da água: pense numa molécula de água. Ela consegue escapar mais rapidamente das gotículas de água líquida superresfriada do que de um cristal de gelo. A pressão de vapor de saturação sobre cristais de gelo é muito menor que sobre gotículas de água superesfriada. Assim, quando o ar está saturado com relação às gotículas líquidas (Umidade Relativa = 100%) ele estará supersaturado para os cristais de gelo. Não é correto dizer assim, mas se calculássemos, a umidade relativa para os cristais de gelo seria superior a 100%. quando a umidade relativa é 100% em relação à água, ela será de 110% em relação ao gelo
Dentro de nuvens de tempestade temos também muito ar subindo, que é o que alimenta a estrutura da nuvem. São as chamadas correntes ascendentes. A velocidade dessas correntes ascendentes varia bastante e isso vai contribuir na formação do granizo. Quando as gotinhas d’água podem subir dentro da nuvem devido a essas correntes, elas acabam colidindo entre si e congelando juntas, formando o granizo.
Se esse granizo ficar suficientemente pesado ele pode superar essa corrente de ar ascendente. Ou seja, a gravidade (força de atração gravitacional) passa a dominar sobre as correntes ascendentes e o granizo cai da nuvem.
Como mencionado no quadro que destaquei, há mais gotinhas de água superresfriada dentro de uma nuvem do que cristais de gelo. Esses cristais de gelo também podem colidir com as gotinhas de água superresfriada, que vão fazer com que os cristais de gelo aumentem de tamanho e assim formam o granizo (processo de acreção). Inclusive, se você puder cortar um granizo ao meio, vai ver que ele é todo formado por camadas, como uma cebola:
O tamanho do granizo pode variar de cerca de 0,5cm de diâmetro até quase 50cm de diâmetro (claro que essas monstruosidades são raras, falei sobre recordes nesse post). O tamanho está diretamente relacionado com a intensidade da tempestade, pois são necessárias correntes ascendentes muito intensas para que ocorra vários “sobes e desces” dentro da nuvem de modo a permitir que mais camadas se formem no granizo e ele fique enorme.
E claro. nesses “sobes e desces” o granizo pode se fundir a outros cristais de gelo menores, a outros “granizinhos” que estão em partes da nuvem onde as correntes ascendentes são menores. E é desse jeito que granizos com aparência ‘estranha’ se formam, como nosso protagonista da postagem.
Muitos chamaram o granizo de Montemorelos de “sinal de Deus”. Esse tipo de interpretação é pessoal: eu prefiro não espiritualizar tudo. Aqui temos uma explicação científica muito clara e conhecida do processo de formação do granizo e que também explica o formato incomum nesse caso.
Em tempos de coronavirus, muita gente está sensível e emocionada. Esse tipo de estado de espírito faz com que muitos deixem de buscar informações confiáveis e se deixem levar por boatos, virando vítimas fáceis de aproveitadores. Um exemplo foi o caso de Valdemiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, que prometia a cura do corona com um feijão de mil reais. Para a maioria de meus leitores isso pode parecer absurdo, mas lembrem-se que vivemos num país que menospreza o conhecimento científico e a importância da Educação. Vivemos em um país onde muita gente não sabe distinguir ciência de pseudociência. Os níveis de analfabetismo científico são muito altos. Esse cenário permite que muitos brasileiros sejam alvos fáceis para aproveitadores.
Claro, o caso do “covidizo” ou granizo no formato de coronavirus aconteceu no México, mas com nosso cenário eu consigo imaginar algo assim acontecendo no Brasil também.
Em tempo: o nome do fenômeno que nos permite ver o coronavírus em todo lugar é a pareidolia. Falei sobre esse assunto aqui, quando citei o clássico exemplo das coisas que conseguimos imaginar ao observar nuvens.
Bibliografia (além dos links mencionados ao longo do texto):
- Everything you need to know about hail – Accuweather
[…] digo tempestade, me refiro àquele evento de chuva intensa que pode ou não vir acompanhado de granizo e que apresenta descargas […]