Tristão da Cunha, um território ultramarino britânico, são algumas das ilhas que ficam sobre a cordilheira submarina Dorsal Mesoatlântica, que fica no meio do Oceano Atlântico. Outras ilhas famosas que ficam também sobre a Dorsal Mesoatlântica são a Islândia, as Bermudas (também território ultramarino britânico), os Açores, os Penedos de São Pedro e São Paulo, a Ilha de Ascensão (também território britânico), a Ilha Santa Helena (também território ultramarino britânico), dentre outras.
O incrível de Tristão da Cunha é que estamos falando de um dos lugares mais remotos da Terra. Fica praticamente no meio do Oceano Atlântico, a meio caminho entre a África e a América do Sul. O arquipélago fica a uma distância de 2000km da ilha de Santa Helena (outro território britânico mais ao norte), a 2400km da África do Sul e a 3360km da América do Sul. O arquipélago consiste:
- Na ilha principal (ilha de Tristão da Cunha) onde fica o povoado de Edimburgo dos Sete Mares (Edinburgh of the Seven Seas);
- Ilhas Nightingale (reserva natural, desabitada). Consiste na Ilha Nightingale, Ilha do Meio (Middle Island) e Ilha Stoltenhoff ;
- Ilha Inacessível (também desabitada);
- Ilha de Gonçalo Alvares (Ilha Gough), onde fica uma estação meteorológica com funcionários (normalmente 6 pessoas) mantidos pelo governo da África do Sul.
O arquipélago foi descoberto pelo navegador português Tristão da Cunha em 1506 e leva o seu nome. Infelizmente o navegador Tristão da Cunha nem conseguiu atracar na ilha devido aos penhascos de mais de 600m de altura com os quais se deparou.
Apenas no século XVIII a fragata francesa L’Heure du Berger conseguiu dar a primeira volta no arquipélago. Os ingleses chegaram anos depois e fizeram todo o trabalho de cartografia do arquipélago, que era totalmente desabitado.
O primeiro colono permanente foi um norte-americano que chegou às ilhas em 1810 e a declarou como sua propriedade. Ele morreu dois anos depois, porém reza a lenda que suas riquezas obtidas com a venda de óleo de leão-marinho para os navios que passavam pelas vizinhanças ainda estão escondidas em algum lugar da Ilha de Tristão da Cunha.
As ilhas foram formalmente anexadas pelos britânicos em 1815, por razões militares. Napoleão Bonaparte encontrava-se encarcerado na Ilha de Santa Helena e temia-se que Tristão da Cunha se tornasse uma base num possível plano para libertar Bonaparte. Com a abertura do Canal de Suez em 1869 e com a transição gradual para navios com mais autonomia, Tristão da Cunha ficou ainda mais isolado, já que os navios não precisavam fazer paradas obrigatórias no arquipélago em suas viagens da Europa até a Ásia.
Após a anexação, as ilhas foram ocupadas por oficiais da Marinha Britânica e aos poucos a população civil foi chegando. Atualmente, são cerca de 260 moradores, todos pertencentes a 8 ou 9 famílias (8 ou 9 sobrenomes diferentes). Ou seja, há uma considerável endogamia em Tristão da Cunha, já que as pessoas acabam se casando entre primos. Estudos já indicaram que problemas como asma {x} e glaucoma (que são proporcionalmente mais comuns em Tristão da Cunha do que na população mundial em geral) tem uma causa genética e são originários dos genes dos fundadores. Ao menos 3 dos primeiros colonos sofriam de asma, e os genes relacionados a essa condição foram transmitidos aos seus descendentes.
Esse isolamento genético possibilitou esse interessante estudo, que chegou a conclusão de que as primeiras mulheres da ilha provavelmente eram mestiças (mistura entre africanos, asiáticos e brancos) possivelmente provenientes de Santa Helena, enquanto os primeiros homens da ilha vieram da Inglaterra, Escócia, Estados Unidos, Holanda e Itália (o que é comprovado pelos sobrenomes das famílias da ilha). Entretanto, esse estudo também mostrou a presença de cromossomos Y de alguém de origem russa que apenas passou pela ilha. Navios russos passavam pela região no início do século XX e é provável que alguém tenha deixado descendentes por lá. A genética sempre revela segredos de família.
A ilha conta com uma equipe médica pequena e um hospital. No entanto, habitantes com problemas de saúde mais graves precisam ser levados até a Cidade do Cabo (Cape Town) na África do Sul. Há uma infra-estrutura de rádio para que navios que passem pela região possam ser avisados a fim de resgatar pessoas com eventuais problemas de saúde mais graves.
A Cidade do Cabo é de onde partem os navios que fazem transporte regular até Tristão da Cunha. Só que não se tratam de viagens semanais. Uma viagem da Cidade do Cabo até Tristão da Cunha leva cerca de 6 dias. Tristão da Cunha não conta com um aeroporto e nem mesmo um aeroporto de pequeno porte, pois uma aeronave pequena ou um helicóptero mal tem autonomia para viajar mais de 2000km precisar parar.
Se uma pessoa quisesse ir da Cidade do Cabo até Tristão da Cunha, teria que esperar até 26 de Março, que é quando parte o próximo navio. Se perder esse, só dia 15 de Maio. Aqui, é possível ver todas as viagens agendadas e suas datas. Mas não basta chegar até a Cidade do Cabo e comprar a passagem. Os navios tem uma quantidade limitada de vagas e os pesquisadores da Estação Meteorológica da Ilha de Gonçalo Alvares e os moradores de Tristão da Cunha evidentemente tem prioridade. Além disso, é necessária uma autorização especial para desembarcar na ilha. Nesse site oficial, é explicado passo a passo o que se deve fazer para visitar Tristão da Cunha. Até mesmo britânicos que desejam migrar para a ilha precisam de autorização especial, pois evidentemente não há muitos empregos na ilha. A maioria das vagas que surgem esporadicamente são para professores, médicos e outros profissionais da saúde e cientistas. As vagas de emprego são postadas aqui e claro, além da capacitação necessária para a vaga, é necessário falar inglês fluentemente. A população na ilha precisa ser estritamente controlada devido aos recursos limitados.
Tristão da Cunha conta com uma pequena escola primária. As crianças estudam na ilha até os 16 anos e depois dessa idade, podem continuar os estudos no Reino Unido.
As principais atividades econômicas da ilha são a industria pesqueira (principalmente pesca de lagostas) e venda de selos postais e moedas para colecionadores. Há também um pouco de renda proveniente do turismo e da produção de artesanato e souvenirs (artigos de lã de ovelhas criadas na própria ilha, modelos de barcos e navios, etc).
Algo que chamou minha atenção nas pesquisas que fiz foi a peculiar organização socioeconômica da ilha. Todas as famílias de lá são agricultoras e pescadoras e são donas de sua produção, só que toda terra é de propriedade comum. Todas as famílias arrendam lotes onde cultivam batatas e os números da pecuária são estritamente controlados para conservar o pasto e evitar a acumulação de riqueza. Toda a ilha é envolvida nessas atividades de produção, incluindo crianças e pensionistas. Muitos dos homens estão envolvidos em atividades pesqueiras, ficando no mar por bastante tempo (normalmente a temporada de pesca dura cerca de 90 dias). Outras pessoas tem empregos assalariados (trabalhando para o governo) e alguns tem trabalho apenas doméstico.
Não é possível comprar propriedades na ilha e é praticamente impossível imigrar para Tristão da Cunha. Lembre-se, estamos falando de uma ilha onde os recursos são escassos. Esse controle estrito é necessário para que os moradores continuem vivendo bem. Teoricamente, se alguém quisesse comprar uma propriedade em Tristão da Cunha teria que convencer todos os moradores a venderem a ilha (já que todos são donos da terra), o que não me parece possível.
Esse modelo socioeconômico me lembra muito o retratado em Star Trek, principalmente em Star Trek TNG (sim, eu tenho que mencionar Star Trek para quase tudo rs), onde um grupo de pessoas solicita um planeta desabitado para colonizar. Não há acumulação de riqueza e todos trabalham em prol da comunidade. As pessoas sentem-se unidas em torno de um objetivo comum e muito maior. É claro que eu não estou aqui dizendo que esse modelo socioeconômico é livre de problemas, já que trabalhar em grupo é muito difícil e sempre tem alguém no grupo que discorda ou que tenta levar alguma vantagem. No entanto, o modelo me parece o mais justo, porque reparte a riqueza com todos e une toda a comunidade em prol de sua sobrevivência e prosperidade.
Eu não tinha mencionado ainda, mas a Ilha de Tristão da Cunha é um vulcão ativo. O ponto mais alto da ilha é o vulcão Queen Mary’s Peak (2062m) e esse vulcão já entrou em erupção, forçando a evacuação total da ilha. Isso aconteceu em 1961, quando boa parte da ilha foi destruída. Mas antes de falar da evacuação total de 1961, é preciso fazer algumas colocações históricas.
A ideia de evacuação total da ilha já havia sido oferecida pelo Governo Britânico em 1906, após um inverno de muita dificuldade. Esse plano de evacuação de 1906 foi rejeitado pelos moradores. Então veio a Primeira Guerra Mundial e todos os esforços do Reino Unido ficaram concentrados no armistício, o que deixou os habitantes de Tristão da Cunha ainda mais isolados. E por falar em guerra, durante a Segunda Guerra Mundial, o arquipélago foi ocupado pela Marinha Britânica e foi utilizada como estação meteorológica e base secreta para monitorar a passagem de U-boats (submarinos) nazistas pelo Atântico.
Na série The Crown é retratada a viagem de 1957 do HMY Britannia pelos territórios britânicos. Foi uma viagem bem longa, passando por territórios britânicos no Oceano Pacífico e no Oceano Atlântico. O Duque de Edimburgo (consorte da Rainha Elisabeth) esteve nessa comitiva, que passou também por Tristão da Cunha. Na série, o Duque de Edimburgo é interpretado por Matt Smith, conhecido também por ter sido a 11° encarnação do Doutor em Doctor Who.
Evacuação da ilha em 1961
A ilha foi totalmente evacuada depois da erupção do vulcão em 1961 e eu fico me perguntando se isso será mostrando ou ao menos comentado nos próximos capítulos de The Crown. Espero que sim, porque esse foi um acontecimento singular. O Queen Mary’s Peak entrou em erupção e os moradores da ilha foram deslocados inicialmente até as Ilhas Nigthingale, usando barcos. Em seguida, um navio de passageiros holandês os levou até o Reino Unido, onde foram recebidos com muita curiosidade pela imprensa. A Royal Society foi até Tristão da Cunha no ano seguinte para avaliar os estragos e a maioria dos habitantes do território retornaram em 1963. Alguns se casaram ou simplesmente se estabeleceram no Reino Unido e não quiseram retornar. Ao todo, cerca de 200 pessoas retornaram após a erupção.
Lutando contra a natureza e contra os desastres ambientais.
Além do severo inverno do início do século XX e da erupção vulcânica de 1961, vários outros exemplos de luta contra a natureza ou contra desastres ambientais ocorreram em Tristão da Cunha. Em 23 maio de 2001, ventos de até 190km/h associados a um ciclone extratropical devastaram parte da ilha, matando gado e destruindo instalações. Em fevereiro de 2008, um incêndio destruiu a área de processamento de pesca e os geradores que alimentam a ilha. A reconstrução foi concluída em julho de 2009. Em 2011, o MS Oliva derramou óleo na região e prejudicou a população de pinguim-saltador-da-rocha (rockhopper penguins) que habitam o arquipélago. Muitos pinguins foram transportados das Ilhas Nightingale até a ilha Tristão da Cunha para serem limpos e tratados.
É realmente o local mais remoto do planeta?
Na verdade, não. Os geógrafos e cartógrafos definem o que eles chamam de polos de inacessibilidade:
Um polo de inacessibilidade é definido como um lugar sobre a superfície da Terra cuja distância à linha de costa é localmente máxima. Como linha de costa deve entender-se a dos oceanos ou de mares ligados com o oceano aberto. O lugar da superfície da Terra mais distante da costa é o polo continental de inacessibilidade e fica na Eurásia.
Um desses polos de inacessibilidade é o Ponto Nemo:
O Ponto Nemo, também chamado de “Polo de Inacessibilidade do Pacífico“, é o local mais distante de qualquer continente ou ilha no planeta Terra, seja ela habitada ou não. Trata-se de um ponto no meio do Oceano Pacífico, nas seguintes coordenadas: 48°52’6″S 123°23’6” W.
Sendo assim, o Ponto Nemo (não tem nenhuma ilha nesse lugar, é um ponto no oceano) é mais inacessível que Tristão da Cunha. Uma curiosidade sobre o Ponto Nemo é que seu nome é uma homenagem ao Capitão Nemo (do livro Vinte Mil Léguas Submarinas de Jules Verne) e que esse ponto é considerado um cemitério espacial. Como não tem nenhum assentamento humano ali por perto, é desejável que todo o lixo espacial caia nesse local. Bom, posso escrever outro post sobre o Ponto Nemo e os demais Polos de Inacessibilidade no futuro.
Conclusão
Esse post sobre Tristão da Cunha ficou mais longo do que o esperado quando comecei a fazer minhas pesquisas. A maior parte do material que encontrei foi em inglês, mas quando me aventurei a fazer algumas pesquisas em português, percebi que havia muitas buscas brasileiras de pessoas que tentavam saber como seria possível se mudar para o território.
Eu fiquei pensando a respeito disso e acho que tem relação com a atmosfera de descontentamento de nosso país. A verdade é muita gente que conheço está procurando por alternativas para cair fora daqui. Algumas pessoas bem sensatas que conheço inclusive aconselham seus alunos a estudarem inglês e espanhol para então buscarem alternativas fora do país.
Deixar sua terra natal não é nada fácil, principalmente deixando a família para trás. É algo que exige uma enorme capacidade de adaptação e resiliência. Mudar-se para os Estados Unidos ou Europa já não é fácil, imagine então se fosse possível mudar-se para Tristão da Cunha, um lugar tão remoto? A adaptação seria dificílima.
As normas restritas de imigração e o modelo socioeconômico permitem que Tristão da Cunha continue sendo uma comunidade de sucesso. Se a imigração fosse possível, eles poderiam ter um enorme problema de falta de recursos, que foi provavelmente o que aconteceu com os Rapa Nui (Ilha de Páscoa).
Provavelmente o modelo de comunidades pequenas seja realmente mais sustentável. A sustentabilidade em Tristão da Cunha é uma obrigação e certamente nós temos muito a aprender com eles.
Indicação de livros
O Meteorópole é afiliado da Oficina de Textos, uma editora séria que reconhecidamente possui livros de qualidade em português para diversas áreas do conhecimento. Um livro da área de cartografia muito indicado para quem está começando seus estudos na área é Roteiro de Cartografia, de autoria de Paulo Márcio Leal de Menezes e Manoel do Couto Fernandes.
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Outro livro que tem total relação com o assunto que abordei no post é Geografia Aplicada ao Turismo, de Raphael de Carvalho Aranha e Antônio José Teixeira Guerra
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Bibliografia
Além dos links mencionados ao longo do texto, temos:
- Tristan da Cunha, Wikipedia
- Tristan da Cunha Website
- Genealogy and genes: tracing the founding fathers of Tristan da Cunha
- Tristan da Cunha, Atlas Obscura
- Ilha de Gonçalo Álvares (Ilha Gough) e suas atividades científicas
- Gough Island, Wikipedia
Vinicius Roggério da Rocha diz
Parabéns pelo post. Tenho fascinação em lugares remotos, mas para visitar e não para morar rsrs Tem gente que acha que mudando fisicamente de lugar vai resolver um monte de problemas, mas vão surgir outros problemas e outros não serão resolvidos, como por exemplo os problemas que a pessoa tem consigo mesma. Você já visitou algum lugar desses “longe de tudo”? Acho que só conheci a Rebio Jaru, Acre e Marsilac =P kkk
ps: tem um texto depois da bibliografia que eu suspeito que não era pra estar lá
Samantha diz
Hahaha obrigada por avisar, não era mesmo para esse texto estar lá!
Era meu roteiro a partir do site oficial de Tristão da Cunha e da Wikipedia 🙂
Eu já estive no interiorzão da Bahia algumas vezes. E eu percebi algumas dificuldades, quando meu marido precisou enviar um documento por sedex. Simplesmente não era possível, não é como aqui.
Igual você falou, curiosidade apenas para visitar. Para morar, sem chance! A adaptação é muito dificil.
Obrigada pela visita 🙂
Letícia Ferreira diz
Obrigada pelo post Samantha, muito informativo e curioso, respondeu todas as curiosidades que eu tinha sobre essa parte remota. Vou acessar sempre esse site agora.
Samantha diz
Obrigada 🙂