Até os anos de 1970, quando se falava em produção de café no Brasil, falava-se no Paraná. O Estado chegou a ser responsável por 48% da produção brasileira de café. Até que o fatídico dia 18 de julho de 1975 chegou e tudo mudou.
Um intensa onda de frio atingiu todo o Centro-Sul do Brasil. O frio chegou até o Acre e Rondônia (o que é chamado de friagem pelos moradores desses Estados). Fez frio até no sul da Bahia. No entanto, os Estados mais prejudicados por essa onda de frio sem dúvida foram os da Região Sul. Praticamente todos os pés de café do Paraná morreram em decorrência do fenômeno de geada negra, que é quando o frio é tão intenso que a seiva da planta se congela, ocasionando sua morte.
As condições para que a geada negra ocorra são as mesmas para que a geada branca (ou geada comum, aquela que deixa os campos branquinhos) ocorra. Aqui a classificação é pelo aspecto visual: com a geada negra, as folhas das plantas não conseguem seus nutrientes e perdem o verde e a planta fica toda escurecida.
Aqui preciso destacar que há basicamente duas maneiras de termos condições de geada: por perda de calor (geada radiativa) ou pela ocorrência do vento frio (geada de advecção):
Numa noite sem nuvens, a superfície da Terra perde bastante radiação de onda longa (calor). Então a superfície vai ficando cada vez mais fria, de modo que ela fica mais fria que o ar que está logo acima dela. O vapor d’água contido nesse ar, em contato com a superfície fria, acaba passando para o estado líquido (condensação). Dessa maneira forma-se o orvalho, que é outro fenômeno meteorológico bem conhecido e bem típico do outono e do inverno. Só que se estiver realmente muito frio, com a temperatura do solo por volta dos 0°C, as gotinhas que formam o orvalho acabam passando para o estado sólido (solidificação). E também ocorre geada quando o vapor d’água existente no ar sublima (passa do estado gasoso direto para o estado sólido, sem passar pelo líquido). Temos dessa forma a geada de radiação, porque houve perda radiativa por parte da superfície. A geada de advecção acontece quando ar bem frio é injetado na superfície, normalmente em decorrência de uma queda abrupta de temperatura, por exemplo, devido a aproximação de uma frente fria. Em geral, as geadas são resultado dos dois processos atuando simultaneamente (geada mista).
De acordo com os relatos dos agricultores que viveram nessa época e que eu ouvi nesse episódio do PodParaná, primeiro veio um vento bem gelado que já começou a matar os pés de café. Depois, com a perda radiativa ao longo da noite (quando esfria mais), veio a geada branca e esse frio perto da superfície também colaborou para que a geada negra se intensificasse. Ângelo Aparecido Priori, professor da Universidade Estadual de Maringá, é pesquisador da área de História Ambiental e falou nesse podcast sobre os impactos desse evento.
A grande geada de 1975 foi um dos responsáveis pelas grandes migrações que ocorreram no Paraná. Logo após o fatídico evento, muitos agricultores perderam toda sua lavoura. O café foi a principal cultura afetada, mas o trigo também teve perdas importantes. Muitos decidiram vender suas terras e partiram para outros Estados, como Mato Grosso, São Paulo e Rondônia. Outros ficaram no Paraná, mas migraram para a Zona Urbana. Cidades como Londrina e Maringá tiveram um aumento substancial em sua população urbana. Poucos permaneceram em suas terras e insistiram no café ou mudaram suas atividades (bovinocultura ou outros cultivares).
Além da geada, outros fatotes da época colaboraram para essa migração. Já estavam em curso incentivos financeiros de diversificação nos cultivares paranaenses. Além disso, na região da fronteira com o Paraguai, muitas terras foram desapropriadas para a construção de Itaipu e muitos ex-agricultores foram trabalhar na grande construção.
O Paraná deixou de ser o maior produtor brasileiro de cafe. De acordo com a Revista Cafeicultura:
Na safra de 1975, cuja colheita já havia sido encerrada antes da geada, o Paraná havia colhido 10,2 milhões de sacas de café, 48% da produção brasileira. Era o maior centro mundial nessa cultura e tinha uma produtividade superior à média nacional. No ano seguinte, a produção foi de 3,8 mil sacas. Nenhum grão de café chegou a ser exportado e a participação paranaense na produção brasileira caiu para 0,1%.
De acordo com o Prof. Priori, as grandes mudanças na agricultura paranaense ocorreriam mesmo sem a geada, mas talvez levassem mais de 10 anos para ocorrerem. A geada acelerou o que já estava em curso, pois outros fatores estavam provocando mudanças na distribuição da população brasileira pelo terrítório.
A onda de frio de 1975 em Minas Gerais
No episódio de geada de 22 de julho de 2021 (semana passada da data em que escrevo), os cafeicultores do sul de Minas tiveram muitas perdas. Num post recente, mencionei:
A EPAMIG estima que 7 milhões de sacas serão perdidas na produção de 2022. Como comparativo, o Brasil produz cerca de 60 milhões de sacas. O Brasil é o maior produtor de café do mundo e a seca e esses dois episódios de geada que afetaram o sul mineiro no último mês preocupam bastante.
Mari Ribeiro, barista e produtora de conteúdo do podcast Traz a Xícara, escreveu que o preço atual da saca dos cafés especiais disparou e o preço do mercado futuro também. Tudo isso já reflexo desse recente episódio de geada, onde alguns produtores chegaram a perder toda a lavoura. Um agricultor ouvido numa reportagem da EPTV disse que não via uma geada dessas desde 1975.
A reportagem da EPTV ainda fala na temperatura mínima em uma das fazendas foi de 2ºC (lembrando que a gente está falando de 22/07/2021). Ocorre que esse é o valor da temperatura do ar e para determinarmos a ocorrência de geada é preciso monitorar a temperatura de relva, a temperatura da superfície do solo. A temperatura da superfície do solo pela manhã é menor do que a temperatura do ar, pois há muita perda de calor durante a noite. Ou seja, se a temperatura do ar nesse lugar estava 2ºC, a temperatura da superfície do solo chegou a valores abaixo de zero.
Penso que ainda não é possível dizer se esses eventos recentes (lembrando que há previsão de geada para 29/07/2022 no sul mineiro também) vão fazer mudar completamente o cenário agrícola do sul mineiro como aconteceu no Paraná em 1975. Hoje temos previsão do tempo, maquinário e outras tecnologias mais desenvolvidas do que naquela época. Como mineira de coração, eu não gostaria de perder a produção de café do sul de Minas e não gostaria que isso desse lugar a produção de soja, por exemplo. O café é parte da identidade do mineiro.
Fontes (além das mencionadas ao longo do texto)
- Revista Cafeicultura
- Geada – MASTER-IAG/USP
- Cafezais foram prejudicados pela geada e produção de café deve cair no Sul de Minas – Reportagem da EPTV
- Fotos da Geada Negra de 1975 – Londrinando
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